O Pranto de Maria Parda (1991)

Texto de Gil Vicente
Encenação de Maria do Céu Guerra
Biblioteca de Almeirim, 27 de Outubro


FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA

Luminotecnia: Paulo Xavier

Adereços: Victor Sá Machado

Produção: Paula Coelho e Mário Guerra

Elenco: Maria do Céu Guerra

PRÉMIOS

Prémio UNESCO para as Artes 1992 - Maria do Céu Guerra  

Fundamentalmente o itinerário de uma privação.
Privação dolorosa, insustentável. Privação que
impõe a figura da Morte.
E aqui vem Mário de Sá Carneiro.
Da falta à irrisão. À ascese.
Maria Parda no barco de Dionísio, à volta do
mundo do vinho e do teatro.
Com Caronte e Rimbaud


Maria do Céu Guerra

O que dizem sobre nós


“Que me recorde, vi este monólogo interpretado por Aura Abranches, Palmira Bastos, etc. e sempre saí lamentando que um texto tão interessante resultasse tão chato. Pois com a Maria do Céu Guerra, de tal modo a recriação é feita por dentro de tudo aquilo que diz, ainda a esta hora eu podia estar lá, a vê-la, que, tenho a certeza, não estaria chateado. Tá dito.”

Victor Pavão do Santos, in “O Jornal”

“A corte portuguesa estava de luto.
Dom Manuel o monarca esplendido e magnífico tinha morrido em 8 de Dezembro de 1521. No dia 19 de Dezembro do mesmo ano foi aclamado o novo rei de Portugal, na pessoa de D. João III. E o ano de 1522 em que foram suspensas, em sinal de luto, as representações do Palácio, deve ter sido para Gil Vicente um ano pouco brilhante. Neste clima nasce o Pranto de Maria Parda.
Quando se pôs a escrever para o teatro, a inventar "isto cá", segundo a expressão de Garcia de Rezende, Gil Vicente seguiu o modelo das personagens das éclogas de Encina, das danças da Morte Medievais e das correspondentes alegorias de que era feita esta cultura.
Nem os pastores saiagueses, nem a Fama ou a Fé, o Frade ou o Judeu são criações suas. Como o não são as figuras bíblicas, os doutores da igreja, os cavaleiros do rei Artur, o Amadiz e Dom Duardos, os deuses da mitologia ou as mouras encantadas.
Gil Vicente escreve para a corte, e a corte está habi-tuada às representações alegóricas dos "momos", quer obras devotas para celebrar o Natal, a corte quer santificar-se rindo, quer as parafrases dos Salmos, a vulgata das Litanias. E Gil Vicente executa. A sua fantasia chega para tudo isto. Repa os cumes góticos no Auto da Fé. Compõe o Auto Sacramental de São Martinho. Faz-se pregoeiro da Cruzada Régia na exortação da Guerra. Mas em 1522 a corte está cancelada e sombria pelo luto. E Gil Vicente sai a respirar uma lufada de ar fresco, pelas ruas de Lisboa. Rodeia-se da turbamulta, dessa arraia - miúda da qual ele saiu. Esse povo que fala a saborosa e imediata linguagem da Ribeira. Que a cada momento recorre a provérbios e frases feitas que ressumam vida e experiência, um povo que comenta, protesta, ri, sem papas na língua e sem respeitos hipócritas pelas conveniências. Como estamos longe dos caracteres falsos e literários dos pastores saiagueses...
... Aqui não se apresenta o Além-túmulo através de figuras de anjos e demónios, a vida não se limita aos pecadores condenados ou salvos. Aqui é a terra dos homens e mulheres com os pés assentes no chão, gente que ronda a rameira para encontrar a hospedaria, homens e mulheres que sabem o que é a Guiné. Aquela Guiné donde a Corte recebe os seus proventos e que é, essa sim, o verdadeiro inferno para brancos e negros. Gil Vicente escuta, sorri, anota. O seu finíssimo sentido linguístico sugere-lhe o arcaísmo na boca da comadre, o provérbio castelhano na boca do vinhateiro espanhol, o dito dissonante mesmo quando a economia da estrofe exigiria a rima perfeita.
Com Maria Parda o intento de Gil Vicente é cómico.
A personagem é caricatural, grotesca, absurda: mas é viva. O seu monólogo é como um delírio que culmina na cerimónia do testamento, louco, grandiloquente, com a mania das grandezas que só a demência pode conceber. Mas a linguagem é dos nossos dias, e dos nossos dias são os provérbios proferidos e os ditos libertinos do texto.
Através de Maria Parda ouve-se um coro de outros bêbedos que reflectem os males de uma cidade assediada pela fome e pela sede:
"Eu só quero prantear
Este mal que a muitos toca..."
Maria Parda não pode ter outro fundo que Lisboa, a Lisboa da Ribeira e de Alfama, a Lisboa da Rua do Cata-que-farás, da Mouraria, da Praça dos Canos e da capelinha do Espírito Santo.
Um mundo que se debruça no fabuloso estuário do Tejo - com a Ribeira à direita e à esquerda Almada, Barreiro e Alcochete. Um mundo que se confina por terra na Arruda dos Vinhos, Abrantes e Atouguia, nas "costas" de Lisboa e que tem na "outra banda" o "glorioso Seixal, senhor de outros Seixais". Um mundo que reza às Santas da Atouguia e da Abrigada.
Um pequeno mundo para quem trabalha todo um império, mesmo em períodos de carestia, um mundo que ainda manda, mas às custas de "Entre Douro e Minho" e que não reconhece cidadania aos habitantes de outros "planetas".”

Luciana Stegagno Picchio

Anterior
Anterior

1991. Uma Floresta de Enganos

Próximo
Próximo

1991. Play it again, Sam