Gulliver (1997)

Texto de Jonathan Swift
Texto e encenação de Helder Costa
Teatro Cinearte, 13 de Maio

FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA

Canções Originais: José Mário Branco

Cenografia, Cartaz: Rui Pimentel

Figurinos: Maria do Céu Guerra, Sandra Calado

Adereços: Gracinda Nave, Jorge Sacadura, Rita Cardoso Pires, Stine Lundgreen, Victor Sá Machado

Luz: Francisco Grave, Paulo Xavier, Marinel Matos

Som: Fernando Pires

Assistência: Teresa Montalvão, Luísa Perdigoto, Alexandra Sobral, João Alpiarça

Carpintaria de Cena: Mário Dias, Paulo Ramalho

Fotografia: Carlos Gil

Elenco: Maria João Miguel, Gonçalo Guerreiro, Tiago de Faria, João Casanova, Filipa Pisabarro, Edite Vicente, Fernando Pires Júnior, Delphim Miranda, José Boavida, Ilda Roquete, Pedro Alpiarça, Paula Coelho, Carlos Vieira de Almeida, Carlos Sebastião

IRONIA E LIBERDADE

Olhamos à nossa volta e o mundo move-se.
A Ciência atinge níveis nunca sonhados, a matéria é domesticada, o ser humano é clonável (penso que isso já aconteceu há bastante tempo), a defesa do ambiente e do bem-estar conquistam terreno contra a predação e a boçalidade do lucro desregrado, a exigência da qualidade de vida está na ordem do dia, e até o exercício de cidadania amplo e universal começa a dar os primeiros passos.
Será agora? Começaremos agora a decifrar as heranças da República de Platão e da Utopia de T. Morus?
Há razões para optimismos? E a multiplicação incessante de conflitos étnicos e religiosos, o alastrar da fome e da penúria para milhões eternamente marginalizados, a guerra, o armamento, a doença, as pestes que parece que vieram para ficar?
Também no princípio do século XVIII estava a nascer a Utopia moderna - "a Ciência iria realizar as velhas aspirações" -, pensava-se que a máquina ia libertar o homem, expandir o ócio e a cultura, humanizar as relações sociais, criar gente bonita e saudável.
E Swift começou a travar alguns desses sonhos bem piedosos e pouco realistas. Para isso, debruçou-se sobre a vida social e política do seu tempo e colocou o Homem, desnudado e desarmado, perante si próprio.
Usou a terrível arma da sátira e demonstrou o absurdo da realidade através da ficção mais insólita. De toda essa obra destaca-se "As viagens de Gulliver", obra-prima que testemunha a acção de um intelectual comprometido com o seu tempo e é simultaneamente ilustrativa do debate cultural e político que tem atravessado a História da Humanidade.
A inteligência brilhante de Swift leva-o a algumas reflexões e citações que podem parecer estranhas, e para as quais quero alertar o espectador (e, espero, futuro leitor de "As viagens de Gulliver" completas).
- Swift, na viagem de Gulliver à ilha Laputa, ataca intelectuais e cientistas. Claro que Swift quer atacar o saber inútil, a erudição balofa, as adulterações da investigação científica, e nunca a instrução, o saber ou a Ciência per se; é por isso que a ilha está no ar, sendo uma "ilha voadora" que simboliza assim a sua deserção da realidade, da terra firme; e a invenção científica nessa ilha só serve de instrumento para opressão política.
- Munodio, o proprietário camponês, reage contra os novos métodos de exploração agrária impostos no país. Mas isso só significa que ele (representação de Swift), considera o passado a sua casa - que tem de ser melhorada e embelezada -, e não uma ruína que tem de ser destruída ao sabor das novas modas que chegam.
- Na terra dos cavalos, Gulliver descobre a repugnância da espécie humana e resolve nunca mais a contactar. Swift quer demonstrar a irracionalidade do homem e para isso utiliza a inversão satírica desorientadora: o cavalo consegue organizar-se socialmente da forma mais próxima dos velhos sonhos utópicos.
É a forma de concretizar que o homem tem uma natureza corrupta, e que a razão, uma faculdade nobre em si mesma, produz os mais desastrosos resultados ao serviço de um querer corrompido.
Pouca gente é poupada nestas grandes aventuras de Gulliver: o rei gigante, Munodio, talvez a esposa de Gulliver, e D. Pedro Mendes, o capitão do barco português que salva o nosso herói na ú1tima viagem.
Curiosa esta referência elogiosa de Swift ao comportamento sensato, afável e amigo do capitão português. Ou talvez não, se pensarmos que Swift conhecia a "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, livro com enorme êxito em Inglaterra, com publicação em 1603 (trad. Henry Gogan), no tempo de Cromwell.
Acontece que Swift foi secretário de sir William Temple em 1689 e sabe-se que a "Peregrinação" existia na biblioteca onde ele trabalhava. Este dado foi divulgado por Rebecca Catz citando uma carta de Dorothy Osborne, referindo-se a essa obra, dirigida a sir W. Temple com quem viria a casar em 1655.
É um facto interessante e não de menor importância porque abre a possibilidade do nosso aventureiro Fernão Mendes Pinto ter influenciado a sátira filosófica de Swift.
Ao fim e ao cabo, a história da Cultura é uma sucessão de heranças e de avanços e recuos. Swift não foi um utopista didáctico, foi como Aldous Huxley em Brave New World, um aliado amargo da Utopia.
O que não quer dizer que tenha desistido das suas convicções. Por algum motivo mandou lavrar no seu epitáfio "... Parte, viajante, e imita, se puderes, a quem lutou com todas as suas forças para defender a liberdade".
Parece-me um bom conselho.


Hélder Costa

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