Xeque-mate (1997)

Texto de Anthony Shaffer
Encenação de Maria do Céu Guerra
TeatroCinearte, 17 de Abril


FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA

Adaptação: Maria do Céu Guerra, Laura Soveral

Tradução: Maria Carlota Guerra, Laura Soveral

Música: António Victorino d’Almeida

Cenografia: Miguel Figueiredo

Figurinos: Maria Gonzaga

Adereços: Victor Sá Machado

Produção: Paula Coelho

Desenho de Luz: Francisco Grave

Assistente de Aderecista: João Alpiraça

Assistência: António Igrejas

Carpintaria de Cena: Mário Dias, Paulo Ramalho

Cartaz: Guilherme Lopes Alves

Fotografia: Mário Guerra

Elenco: Maria do Céu Guerra, Laura Soveral

É esta a terceira vez que A Barraca leva a cena trabalhos sugeridos por amigos ou companheiros de laboratório nesta grande alquimia que deve ser usufruir de um espectáculo e prepará-lo.
Muitos dos que vivem ou viveram do lado de dentro do pano de boca sonharam com o dia em que essa cortina deixasse de ser de ferro, para o palco ser, mais e melhor, o reflexo, o veículo, a interpretação ou a reinvenção dos sonhos, dos desejos ou dos medos que os espectadores lá deixaram em liberdade.
Eu faço parte desses que travam todos os dias uma espécie de diálogo imaginário não com o público (essa coisa no escuro que ri e chora ao mesmo tempo, nuns dias mais que noutros, inexplicavelmente), mas com cada um dos seus integrantes presentes na sala e, às vezes, ausentes.
Gosto de pensar que cada um deles sabe que eu lhe digo a verdade. E que não é pela vertigem do falso que chegamos a qualquer surpresa. Embora cada um saiba também a atracção que o falso exerce sobre nós. É com base nesse pressuposto que componho a utopia do espectador ideal. Sendo que ideal é o espectador que já viu quase tudo o que fizemos, e portanto sabe enquadrar o nosso trabalho numa trajectória que conhece, que não deixa de avaliar o mundo de significados e significantes que um trabalho é, em si mesmo, e tem dele uma perspectiva crítica. Mas que ainda se surpreende.
Ou seja, não é o espectador que nos acompanha aos Prazeres quando morremos, mas o que nos acompanha nos prazeres enquanto estamos vivos.
Por tudo isto fico felicíssima quando me trazem uma ideia para um espectáculo que a minha sensibilidade, os meus valores e a oportunidade não rejeitam.
Há anos, a Maria João Seixas trouxe-me as "cartas à filha" de Calamity Jane. O momento em que essas cartas me encontraram rejeitou-as liminarmente. O espectáculo foi chumbado pela oportunidade. Dois anos depois, com o Hélder, vim a fazer dessas cartas uma das peças que mais alegrias me deu. Ainda tenho os cheiros de Deadwood na memória e não ouço num western os passos lentos de um cavalo, sem estremecer e pensar no "meu" Satan.
A segunda sugestão que me lembra de ter aceitado foi "O Último Baile do Império" adaptação do "Baile da Despedida" de Josué Montello. Foi trazida do Rio pelo meu irmão do Brasil, o Manuel Ribeiro, arquitecto dos pobres, que descobriu na história uma personagem fantástica "por que eu me iria apaixonar" e que acabei por não fazer trocando o papel de actriz pelo de encenação e adaptação ao palco, onde o recompuz afinal, como romance, numa experiência única que teve a Ilda Roquete como protagonista e o José Boavida, e o Pedro Alpiarça, e o Vieira de Almeida, e o Sebastião, e a Laurinha e a Titina como parceiros.
E agora foi o Nuno Brederode Santos quem me trouxe o Xeque-Mate. É dos espectadores que fizeram do exercício de o ser uma das mais refinadas artes do espectáculo. É, digamos, o espectador ideal. Sugeriu-me a peça, de que aliás eu já gostava através do filme de Manckiewick. E fez mais, sugeriu-me a adaptação para o feminino das duas figuras masculinas. E ensinou-me o que é um xeque-pastor.
É uma tentação fazer sair o espectador ideal do seu lugar na plateia. Mas cuidado, corre-se o risco de afundar um bocadinho mais a ilha de Thomas More. O Nuno trouxe a peça. Melhor dito, provocou-me com a peça. E eu gosto de responder a provocações. Aliás respondo sempre a provocações. Desde que lhes reconheça estatuto de provocação. E preciso disso como de água para o whisky (com perdão de Laura Esquível).
Mas agora o espectador perguntará "e o que fica para ti, criadora de espectáculos, quando o projecto te vem de fora?"
Fica muito ainda. Fica quase tudo.
Fica reinventar a linguagem que continua a ser nossa.
No caso do Xeque-Mate fica um desafio enorme. Porque o teatro tem-se perdido em exercícios frios, cultistas, que apostam mais no racional e nos tornam cúmplices a partir do que sabemos, esquecendo-se de que é pelo que sentimos que o espectáculo se transmite. Fica o reconstruir da ilusão, sem a qual não há empatia. A ilusão maior que a vida.
Fazer o público acreditar no que está a ver, para chegar à maravilha que é o "suspense" em teatro. Onde o investimento não é feito com a câmara a isolar pormenores, a deferir tempos, a ampliar olhares, como no cinema, mas na máquina-actor em que quase tudo reside.
Actor que assustado nos assusta. Emocionado nos emociona e técnico nos engana.
Fica ser o actor.
Fica dirigir o actor.
Fica contar esta história que confronta classes sociais e artes poéticas. Mostrando tão bem que uma estética tem sempre consigo uma posição de classe e uma ética/Uma ideologia.
Fica dirigir a Laurinha, a amizade em movimento, e trabalhar outra vez com o António Vitorino e ver como é o génio e a criação a acontecer e fica o trabalho com o Miguel Figueiredo aflito porque não sabe o talento que tem, e com uma equipa conhecida, amiga e confiável.
E fica, o que é mais, saber que estamos acompanhados.


Maria do Céu Guerra

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