Santa Joana dos Matadouros, 1984

Santa Joana dos Matadouros (1984)

Texto de Bertolt Brecht

Encenação e Dramaturgia de Hélder Costa

A Barraca da Alexandre Herculano, 30 de Julho de 1984


FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA

Tradução: H. Pfluger

Música: António Victorino de Almeida

Coreografia: Patrick Hurde

Cenografia: A Barraca

Banda Sonora: João Paulo Guerra

Carpintaria: Mestre Barata

Luminotecnia: Luís Viegas

Elenco: Alexandra Solnado, António Capelo, António Cardoso, João de Azevedo, João Maria Pinto, José Carretas, José Gomes, Manuel Marcelino, Maria do Céu Guerra, Paula Sousa, Teresa Faria

PRÉMIOS

Prémio Associação Portuguesa de Críticos - Melhor Partitura Musical: António Victorino d’Almeida 

“A Barraca” pioneira da discografia teatral

«O primeiro passo para a criação de uma discografia de teatro em Portugal» foi como o maestro António Vitorino de Almeida definiu o disco da peça «Santa Joana dos Matadouros», editado pela Cooperativa de Produções Artísticas «A Barraca».
Autor da música para a adaptação que Hélder Costa fez do texto de Brecht, Vitorino de Almeida afirmou ao «CM», no recente lançamento do disco, sentir-se «companheiro dos pioneiros d’A Barraca, que assumiram um risco ao produzi-lo, já que em Portugal não existem discos de teatro. Mas é possível que venha a existir uma discografia especializada a partir deste disco porque, em Portugal, também se descobrem as coisas, embora sempre com um certo atraso. de qualquer forma, por enquanto, toda a forma de arte ainda é um risco no nosso País...».
Para já, segundo o maestro o importante é que quem corre o risco o faça por gosto. E parece ser esse o seu caso: «Já havia feito música para várias peças em Lisboa e também em Viena de Áustria, onde trabalho com muita regularidade. Por isso foi muito gratificante ver esta experiência registada. Gosto imenso de musicar coisas de teatro e cinema, pois a linha estética utilizada na composição é muito mais va-riável do que quando escrevemos uma partitura de música para um concerto. Em vez de ser uma prisão o sujeitarmo-nos às exigências do guião, é tão grande a sua variedade que isso se torna fascinante. O músico deste tipo é o que mais liberdade tem, pois o músico de concerto está sujeito a tais preconceitos por parte do público e da crítica que, actualmente, se encontra nulo criativamente». E, na sequência desta opinião, ele tem previsto para o próximo ano, um musical com o grupo nacional de teatro de Viena.
Considerando como «a memória do espectáculo», o disco da «Santa Joana» - que além do maestro ao piano tem as vozes dos actores e a colaboração especial de Adelaide Ferreira - não será, no entanto, como alertou Vitorino de Almeida, suficiente para apreender a peça que «A Barraca» mantém em cena com grande sucesso. Diz ele que «o espectador que levar para casa o disco, estará levando uma boa parte da peça, mas isso não quer dizer que quem não assistiu a ela o possa fazer apenas através do disco». Comprar o disco é pois, mais uma óptima razão para se ir ver «Santa Joana dos Matadouros» pel’«A Barraca».

"Conversa com um curioso"

Curioso - Porquê esta montagem de Brecht?

R - É um bom escritor. E aborda temas que me interessam.

C- Qual é o tema da peça?

R -"Santa Joana" trata a grande crise do capitalismo de 1929. E fala, com respeito e sem achincalhamento, das tentativas de solução para a crise por parte de pessoas com bom coração e toneladas de idealismo. Joana simboliza esse género de pessoas.

C- No decorrer do espectáculo há uma mudanca de cor, de clima.

R- A minha interpretação do texto de Brecht consistiu em considerar que há um calor insuportável, um ar que se torna progressivamente abafado e irrespirável, um clima de trovoada que está a chegar. A tempestade vem com a neve, com a derrota da classe operária, e com a manipulação dos sentimentos idealistas. Mas tudo recomeça, tudo recomeçará sempre. No fim do espectáculo, o calor regressa. Virá aí outra trovoada.

C- A neve é um acidente da natureza?

R- Não. A neve é uma imagem simbólica de tempes- tade (inesperada ou prevista), que cai sobre quem não tem protecção. É dono do mal, quem não sofre com ele. No espectáculo, a neve é lançada por quem tem interesse que ela exista. Mauler rasga o papel que Joana abandona, e assim "autoriza" o início da neve. Mas há outros tipos de neve: os panfletos que são lançados pelos soldados de Deus, os dólares com que Mauler corrompe guarda-costas e criadores de gado, constituindo assim o seu Exército.

C- Joana também lança neve sobre a sra. Luck.

R- Joana serve-se da neve como o polvo que lança tinta para conseguir fugir.

C - Fugir do povo?

R - Porque não? Os bons sentimentos fraquejam pe- rante a dureza das necessidades materiais.

C- Mauler está quase sempre no seu espaço...

R- Sim. Mauler está na sua fortaleza, no seu ponto de vigia. E sempre que sai, a vida corre-lhe mal. Julgo que a imagem do capitalismo é a do castelo no alto de a maior forca aliada ao maior medo.

C - A Bolsa tem um espaço indefinido...

R - É preferível falar de espaço aberto. Estão nesse caso, a Bolsa e a casa dos Soldados de Deus. Digamos que se trata de exemplificar que o desenvolvimento da especulação financeira e da propaganda religiosa não têm regras rigorosas. e não se processam segundo normas tradicionais. Aliás, se seguissem a tradição, o "respeito pelos princípios", há muito que teriam desa- parecido. Na Bolsa há a corrupção, a criminalidade, o gangsterismo, os títulos tornados inúteis, a ameaça e o medo.

C - Os operários representam ao fundo...

R - O operário fabrica uma barricada. Penso que a barricada é o grande símbolo das lutas operárias dos últimos séculos, e talvez por isso, as vitórias do operariado sejam tão escassas. Essa barricada vai-se desenvolvendo, os operários tentam alargar a sua influência - e saiem para tentar chegar a outras fábricas e a outras camadas trabalhadoras - mas são derrotados. E é com os restos e detritos da barricada que se constrói a nova e próspera casa dos Soldados de Deus. Com distribuição de sopa, como convém. Aliás, é também com desperdícios e bocados de lixo que Joana constrói o seu sonho. Todos se aproveitam da barricada.

C - No original de Brecht não existe nenhum grupo de teatro de agitação e propaganda.

R- Mas existem os textos que representam as posições que na época eram defendidas pelos Spartakistas e pelo P. Comunista Alemão. E há muitas frases para coros falados, uma das várias formas usadas pela agitação e propaganda. Decidi escrever essas pequenas cenas seguindo as palavras de Brecht, e fiz a minha pequena homenagem a Brecht, Karl Valentim e LiesI Karlstadt, colocando-os como actores desse pequeno grupo de teatro. Trata-se de não deixar que caia no esquecimento que eles também participaram nesse movimento cultural e político.

C - Sim, também me parece bem que isso não se esqueça.

R - Também eliminei um estilo demasiadamente propagandístico para o gosto actual. Fiz bastantes cortes no texto, tratei bastantes pontos com espírito de farsa, passei diálogos de exposicão política para conversas entre avô e neto (ardina), com a fábula dos vimes, etc. Quero referir ainda, que Brecht fez um trabalho de texto rebuscado e classicista, destinado a criar distanciação e a combater o verismo. Da minha parte, não me interessaram as citações de Goethe e Schiller, porque o novo público não as entende, mas substituí-as por citações portuguesas de Garrett, Pessoa e Sá Carneiro.

Falando das liberdades em relaçao a Brecht, outra que tomei foi a de considerar que esta "Santa Joana é umaresposta de Brecht ao filme "Metropolis” de Fritz Lang, que era o filme preferido de Hitler. E por isso que Joana, expulsa dos Soldados de Deus, tem um vestido e uma imagem semelhante a heroina desse filme e também com algo de semelhante aos cilícios medievais de Joana D'Arc. Muitas destas ideias foram elaboradas pela Céu nas suas funções de figurinista. A propósito cito parte da peça de agit-prop "Filme" dessa época: (...) mas deixemos isso, a UFA (produtora de filmes) também mostra filmes sociais; temos muita compreensão pela miséria. Vejam, por exemplo, METROPOLIS. Os trabalhadores vão para a fábrica, cheios de força e de vontade (operários entram em cena, com andar marcial, como em Metropolis). Mas voltam à noite, cansados e curvados para o chão. (Os operários voltam, costas curvadas, arrastando as pernas, e param no meio da cena). O operário é o braço; o cérebro que dirige este braço, é o capital, e o mediador entre o capital e o braço é o coração; este coração (...).

Bem, a história continua. Mas julgo que já chega para ilustrar o que eu dizia.

C- Quando Joana vai aos abismos, com Slift, ja está com a vocação de mártir?

R- Claro. Toda a história está desenvolvida como uma predestinação. Joana vai lutar, vai sofrer, morre, e será utilizada. Montei essa cena como uma peça de teatro que é encenada por Slitt e produzida por Mauler - que assiste à representação do seu espaço. Joana entra como Joana e como actriz, representando a rapariga desempregada.

C- Ainda não Talamos sobre a liberdade possível com Brecht.

R- Julgo que Brecht tem que ser tratado sem que se considere a sua teoria um catecismo. Não interessa o posição de Brecht, o grande genio do teatro marxista, o teatro que sabe por em cena, de forma dialéctica, os grandes problemas de qualquer época.

C - Mas há quem diga que Brecht está datado e ultrapassado.

R- A maior prova que o marxismo está cada vez mais vivo, é que diariamente se escrevem centenas de artigos a tentar provar que ele morreu. Está respondido?

C - Quer dizer que Brecht o continua a interessar.

R- Mais do que nunca. Até porque, citando um amigo meu, prova-se neste ano de mistificação Orwelliana, que havia mais gente que tinha escrito sobre 1984. como, por exemplo, Bertolt Brecht. E não nos queremos esquecer que o nosso teatro se destina a criar o gosto pelo saber, e o prazer pela libertação. Isto significa um acto militante contra tudo o que seja expioração ou opressão, sob qualquer forma.

C- Porque é que não me disse isso ao princípio?

R- Porque os leitores andam com tanto medo e estão tão fartos de politiquices, que não liam a nossa conversa até ao fim.

Hélder Costa

Anterior
Anterior

1983. Um dia na Capital do Império

Próximo
Próximo

1985. Um Homem é um Homem - Damião de Góis