Farsa de Inês Pereira
Texto de Gil Vicente
Espectáculo de Maria do Céu Guerra
DISPONÍVEL MEDIANTE MARCAÇÃO
Sessões: Terças e Quartas, às 10h00 e às 11h30
Contactos: telefone. 213 965 360 | email. barraca@mail.telepac.pt
Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube
Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube
FARSA DE INÊS PEREIRA
M/12
Texto Mestre Gil Vicente
Encenação Maria do Céu Guerra
Elenco Érica Galiza, Manuel Petiz, Paula Guedes, Teresa Mello Sampayo, Ruben Garcia/Tiago Assis, Samuel Moura, Sérgio Moras
Assistente de Produção Samuel Moura
Desenho de luz Vasco Letria
Operação de Luz e Som Maria Baltazar
Guarda-roupa Elza Ferreira
Secretariado Inês Costa
Farsa de Inês Pereira
Gil Vicente deu ao Teatro Português algumas das suas mais belas e complexas figuras femininas: Constança (Auto da Índia), Genebra Pereira (Auto das Fadas), Maria Parda (Pranto e Testamento de Maria Parda), Inês Pereira (Farsa de Inês Pereira) entre outras. Esta última – a que neste espectáculo damos vida – é uma figura rica, contraditória e protagonista da comédia mais bem construída do autor. Maltratada pela censura que lhe roubou, entre outras, as referências ao eremitão abusador, A Farsa de Inês Pereira foi das poucas obras de Gil Vicente das quais sobreviveram duas edições distintas. A primeira de cordel, onde se conserva a versão integral e a segunda editada depois da Censura da Inquisição que flagelou também Os Autos das Barcas, O Jubileu dos Amores, A Aderência do Paço, entre muitas outras obras do autor.
Mas afinal o que continha a primeira edição desta comédia aparentemente ingénua para merecer o castigo da censura?
Desde logo a sua protagonista é uma jovem popular, o autor situa a história em Tomar (cidade onde se realiza a estreia do espectáculo), que sabe ler e escrever, habilidade habitualmente só concedida às meninas da nobreza. E mais grave, é uma rapariga que deseja absolutamente ser livre e feliz. E desejar ser feliz e livre não é aceitável em tempos de Inquisição.
Para que esta personagem passe no crivo do tempo, ela tem tem de ser contraditória e nem todos os seus comportamentos podem ser muito correctos. E por isso a personagem é cómica e a sua personagem é transgressora. Rodeada de personagens que são tipos como o rústico Pedro Marques, a mãe austera, a alcoviteira sem moral, o galã machista, o ermitão abusador, Inês Pereira é verdadeiramente uma personagem com identidade e vida própria para a qual as nossas raparigas ou rapazes devem olhar com atenção porque ela faz parte da sua história.
O espectáculo procura fazer uma pintura bem-disposta da vida, da casa, dos costumes e das ambições dos portugueses rurais de um tempo que, com ou sem Descobrimentos, verdadeiramente só se alterou no século XIX.
Mais sobre a Farsa ou Auto de Inês Pereira
Farsa de Gil Vicente que foi representada pela primeira vez em 1523. As farsas, diametralmente opostas às «moralidades», baseiam-se em temas da vida quotidiana, tendo um enredo cómico e profano. A Farsa de Inês Pereira parte da glosa de um mote: «mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube». Esta circunstância é explicada na didascália de abertura do texto: «que por quanto duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse».
Todo este enquadramento recorda a inserção do teatro vicentino no contexto da Corte. A ideia de glosa de um mote é claramente cancioneiril, e a menção dos «homens de bom saber» constitui uma referência direta ao público cortês, devidamente familiarizado com as convenções de elaboração e receção do texto literário. Este era dotado de uma incontornável vertente não só dramática mas acentuadamente teatral, facto que o ligava intimamente à sua receção, como é óbvio neste caso.
Entre o «asno» e o «cavalo» do mote inicial oscilará Inês Pereira, a personagem principal, jovem casadoira mas exigente. O «asno» é Pero Marques, o seu primeiro pretendente, que lhe é trazido por Lianor da Vaz, alcoviteira típica do tempo. Pero Marques, lavrador inculto que nunca viu sequer uma cadeira, personifica a rusticitas, que porque se opõe diametralmente à urbanitas cortês, à referida cultura assente em convenções comportamentais, não deixa de provocar o riso, assim funcionando como mecanismo subliminar do autoelogio da Corte. Inês Pereira recusa-o, pois pretende antes alguém que demonstre alguma urbanidade, alguém que, à boa maneira da Corte, saiba combater, fazer versos, cantar e dançar, alguém como Brás da Mata, o segundo pretendente, que lhe é trazido pelos Judeus Casamenteiros, um pouco menos sinceros e bem-intencionados do que Lianor Vaz. Mas Brás da Mata representa apenas o triunfo das aparências, um simulacro de elegância, boa-educação e bem-estar social, que acredita no casamento como solução para as suas dificuldades financeiras. Incapaz de ver para além das aparências, Inês escolhê-lo-á como marido, assim definindo o seu carácter ao longo das diversas situações da peça: solteira ingénua mas cheia de ambições de ascensão social, casada com o escudeiro e desencantada, viúva, depois de o marido morrer na guerra fugindo de uma batalha (violação de um dos elementos fulcrais do código cortês), e, finalmente, esposa leviana e adúltera de Pero Marques, o «asno» que literalmente a leva às costas para o encontro com o seu amante.
Trata-se, portanto, de uma sátira aos costumes da vida doméstica, jogando com o tema medieval da mulher como personificação da ignorância e da malícia.