Pessoalmente Quatro Poetas - Recital de Poesia (1999)

Recital de poesia de Fernando Pessoa, David Mourão Ferreira, 
Alexandre O'Neil e António Quadros, por Maria do Céu Guerra
Teatro Cinearte, Janeiro de 1999

Pessoalmente
4 Poetas

Quando comecei a ler poesia fui direitinha ao Pessoa. Em pequenina, a minha mãe ensinou-me de cor a "Autopsicografia" e não me lembro de existir sem aquela confusão "das duas que ele teve" e de "a que ele não tem".
Assim, a tratos com essa iniciação à esquizofrenia, lá fui andando desde cedo, com a "última esperança dada à última ilusão", Eu, aos quinze anos, absolutamente decadentista, em Cascais, um Fernando Pessoa de bicicleta, a tiritar de poesia diante da Boca do Inferno: Ele era eu "com melhores desenhos na louça", melhores palavras.
Depois vieram outros: Camões, Baudelaire,Rimbaud, Poe, Pessanha, Drumond, João Cabral, Cesário e depois Ginsberg, Ferlinghetti, Gregory Corso. E a poesia continuava a ser como um caminho surpreendente e sinuoso que me levava a mim mesma. E o poema era, às vezes, uma espécie de bolo de fogo feito para mim, propositadamente, para me incendiar os bolsos onde, guardado, era um alimento secreto ou, outra vezes, o poema era um lobo de luz, equidistante de mim e do poeta, que me iluminava o caminho e amedrontava.
Depois estudei letras. Poucas. Nessa altura, a uma actriz, por aqui não se pedia muito. E conheci o David Como aluna. E passou a ser ele quem "me escrevia" os poemas de amor. Só mais tarde percebi que o David Mourão-Ferreira era mais do que um poeta do amor.
Que ele era também um poeta da morte, e da cidade e principalmente, da memória e do tempo. E que tudo o que ele escrevia era como a decantação de um pesadelo e que, por isso, é que ele era um grande poeta. E que a mim também me parecia que tinha sonhado aqueles sonhos.
Depois ao ler o Alexandre O'Neill é a minha cidade inteirinha que se ilumina. Não foi com Cesário, não senhor, que a minha Lisboa nunca a vi à luz do gás. Foi com O'Neill que eu senti esse dente a moer dos lisboetas. Esta amargura de molha todos. E com ele, para mim, ser português tornou-se mais claro. Sem sociólogos, sem saudosistas. Só com essa nostalgia que é como o tal chinelo que se arrasta no pé. Era também meu o "remorso de todos nós", o desespero na procura do "verso que não há". Eu, também, personagem invisível de uma "feira cabisbaixa" a "tropeçar de ternura" como o Belarmino e o Lopes e o Cardoso Pires e outros "amigos pensados", e o Ribadouro, e a Rua do Jasmim, e... "se uma  gaivota viesse..."
Depois, um dia, na minha vida já adulta, confrontei-me com a poesia como iniciação já não a mim mesma mas ao Outro. Pela poesia, também, percebo que reconhecer o Outro é saber onde começamos e onde acabamos. É aprender na dor do Outro  a delimitar a nossa dor. E o Outro foi António Quadros. O Outro de todos, Solitário/solidário. O Morgado Beirão. O Africano. O do Renascimento. Pintor a braços com imagens que nunca foram de mais ninguém. Poeta de heterónimos, mais propriamente, João Pedro Grabato Dias. Infância com magas/meigas. Mar de Figueira. Lisboa operária da década em que eu nasci. Rosa Ramalho. Indignações. O aristocrata que exigia que todos fossem excelentes. O Outro irradiante com quem ainda não parei e aprender. É que, se é um astro-rei que nos ilumina, não faz mal que a luz que projectamos não seja nossa. Porque dela fica sempre um clarão.

Maria do Céu Guerra

O que dizem sobre nós

“(...) a poesia que Maria do Céu Guerra diz é, em última análise, uma actualização da memória – a memória de cada um de nós, e por isso também a memória colectiva, conectada com a história e com os sentidos diversos da escrita.”

Maria Alzira Seixo

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