
19 ABR - 13 JUN 2021
UM IVANOV
Ensaio Sobre a Mentira
Texto • Anton Tchekhov
Encenação • Maria do Céu Guerra
BILHETES
UM IVANOV
ENSAIO SOBRE A MENTIRA
Texto Anton Tchekhov
Encenação Maria do Céu Guerra
Com Ruben Garcia, Adérito Lopes, Samuel Moura, João Maria Pinto, Rita Soares, Teresa Mello Sampayo, Susana Alves Costa, Maria do Céu Guerra, Sérgio Moras e João Teixeira
Tradução Sinde Filipe
Música António Victorino d’Almeida
Assistentes Vasco Lello e João Teixeira
Direcção técnica e desenho de luz Vasco Letria
Equipa técnica de operação Ruy Santos e Ruben Esteves
Modista Alda Cabrita
Costureira Zélia Santos
Fotografia Maria Abranches
Cartaz Luís Henriques
M/12
ÚLTIMAS SESSÕES
4, 5, 11 e 12 Junho às 19h30
6 e 13 Junho às 17h
“Ivanov, burguês bem-nascido, acumula dívidas. Com trinta anos apenas dá-se conta da sua súbita falta de forças para a vida. Vive na contracorrente do seu, nosso tempo. Os seus projetos falharam e os que o rodeiam não admitem pessoas que não sejam ambiciosas. Ele sofre a vida em vez de a viver.”
Anton Tchekov, Autor
Carta a Souvorine sobre Ivanov
Tudo o que Tchekhov quis dizer sobre o Teatro , Dezembro 1888
Eu tinha a impressão que todos os escritores, todos os dramaturgos tinham sentido a necessidade de criar um ser melancólico e que o tinham escrito todos eles instintivamente ou seja sem ponto de vista. Com o meu projecto Ivanov eu atirei a esse alvo. Ivanov é um nobre, um universitário que não tem nada de notável. É uma natureza emotiva, ardente, que facilmente se deixa levar pelas suas paixões, honesto e direito como quase todos os nobres com cultura. Viveu na sua propriedade e teve lugar na assembleia territorial. Foi um homem activo assim que acabou os estudos dedicou-se com energia às escolas, aos camponeses, à exploração racional do território, faz discursos, escreve ao ministro, combate o mal, aplaude o bem, ama, não de forma fácil ,mas sempre, os trabalhadores, os doentes mentais, os judeus, ou até as prostitutas que chega a proteger. Carrega às costas fardos para os quais não tinha força. Aos trinta e cinco anos está cansado e farto. Diz de si:” se me olharem só pelo lado de fora, a leitura é terrível, nem eu mesmo percebo o que se passa comigo. “Quando alguém dá por si nessa situação e é desonesto ou estreito de vista normalmente faz recair a culpa sobre o meio ou passa a considerar-se “um dos que estão a mais” um Hamlet, e chega a contentar-se com isso. Ivanov fala de uma falta que terá cometido, e o sentimento de culpa vai crescendo dentro dele a cada novo choque com a sociedade: “Dia e noite a minha consciência tortura-me, sinto-me profundamente culpado, mas não compreendo nunca qual é na verdade a minha culpa...”Ao esgotamento, ao tédio e ao sentimento de culpa junta-se um inimigo. A solidão. Ninguém tem nada a ver com a mudança que ele sente operar-se em sim mesmo. Está só. Invernos longos, noites longas, um jardim deserto, divisões desertas, um conde rabugento, uma mulher doente...Nenhum lugar aonde ir . Todas os minutos a mesma questão o tortura : que fazer de si e consigo? As pessoas como Ivanov deixam de resolver os problemas, afundam-se no seu peso. A decepção, a apatia, a fragilidade nervosa e o cansaço são a consequência inevitável de uma grande exaltação e essa exaltação é própria da juventude. Passemos ao doutor Lvov. É o tipo acabado do homem honesto, direito, ardente, de espirito tacanho. Ele olha cada acontecimento, cada pessoa, através do seu quadro estreito e julga tudo de forma preconceituosa. Na minha imaginação Ivanov e Lvov apresentam-se como pessoas vivas. Digo-o de alma e consciência tranquila, sinceramente estes homens não nasceram na minha imaginação vindos da espuma do mar, de ideias preconcebidas, de “intelectualismos” ou do acaso. Eles são o resultado da observação e do estudo da vida. Se o publico sair do Teatro com a convicção que os Ivanovs são uns malandros e os doutores Lvovs são grandes pessoas, só me resta retirar-me e enviar ao diabo a minha pena.
Arche Editeur, 2007
Trad. Maria do Céu Guerra
Falamos a sério?
A 15 de Março de 2020 encerrámos as portas do Teatro Cinearte ao público e aos companheiros da Barraca, que até Maio se mantiveram confinados, suspendendo os epectáculos em cena: “A Torre de Babel”; as peças integrantes do nosso serviço educativo - “1936 - O Ano da Morte de Ricardo Reis” e “A Farsa de Inês Pereira”; os ensaios de “Ivanov” e a preparação da dramaturgia de “O Elogio da Loucura”.
Durante o período da quarentena, naquela solidão aterradora, fui tendo sentimentos misturados sobre a minha querida obra de Tchekhov de que a razão parecia levar-me a desistir. Rearrumei a minha biblioteca e fui pensando. Reencontrei obras sobre as pestes, reli Camus, Artaud, Jack London, Poe. A situação tendia para substituir o que tínhamos em mãos e pensar tudo outra vez. Mas uma reflexão mais calma levou-me às razões pelas quais eu queria tanto fazer esta peça. Afinal a pandemia só era tão assustadora porque o estado do mundo já era assustador: a pobreza, o abandono dos fracos, o aquecimento global, a saúde, o ensino, a cultura a esbracejarem de incompreensão, nos países ricos e pobres, e o mundo a calar-se ou a mentir. Milhões de pessoas a morrerem de fome e outros milhares de milhões a serem gastos por muito poucos a inventar uma rota de fuga para um novo planeta sem riscos... Mentiras. Factos alternativos. Mentiras.
Então voltei aos temas da minha peça: a revelação da mentira e da calúnia assassina como crime e a condenação do mundo que exige uma impossível coragem aos pobres, aos doentes, aos velhos, aos deprimidos. A mentira que mata e a obrigação de resistência a quem não tem onde ir buscá-la. E reavaliei aquela opinião que gritava de dentro das televisões “é preciso fazer tudo a partir da nova situação da pandemia” e repensei “é preciso fazer tudo a partir da valorização do ser humano”. É isso, o mundo tem de ser revisto pelos olhos agudos de Tchekhov, é preciso verdade, tolerância, generosidade e justiça. E uma espada desembaínhada contra a mentira e a demagogia.
Maria do Céu Guerra, Encenadora





