Fantasmas (2022)

Texto de Henrik Ibsen
Espectáculo de Rita Lello
Teatro Cinearte, 27 de Janeiro de 2022


FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA 

Texto: Henrik Ibsen

Tradução, Dramaturgia e Encenação: Rita Lello

Elenco: João Teixeira, Rita Lello, Ruben Garcia, Sérgio Moras e Teresa Mello Sampayo

Assistentes de Produção: Samuel Moura e Vasco Lello

Desenho de luz: Vasco Letria

Operação de Luz e Som: Ruy Santos e Ricardo Silva

Guarda-roupa: Elza Ferreira

Design Gráfico e Cartaz: Maria Abranches

Secretariado: Inês Costa

Fotografia: Maria Abranches

Lixo dos dias

No seu tempo Ibsen problematizou as grandes questões com que nos confrontamos ainda hoje, problemas em aberto com os quais nos debatemos cerca de 150 anos depois. O objectivo desta nova tradução com revisão directa do original norueguês é criar um texto para o palco e apresentar com clareza os temas com que se debatem as personagens.

Em Fantasmas, assistimos ao combate entre a liberdade e o status quo. Helena Alving, agrilhoada pelas convenções retrógradas de que é representante o Pastor Manders, percorre, nas escassas 12 horas do tempo da acção, um caminho de luta pela verdade, pela verdade acerca do passado daquela casa, mas também pelo seu direito individual à verdade e à felicidade. 

A doença que Osvald Alving herdou – a permitir a intemporalidade do seu texto, Ibsen nunca escreve a palavra Sífilis e em todas as épocas há uma peste mortal - e o objectivo de conseguir uma morte assistida - razão que o faz regressar a casa - dominaram, à época com escândalo, e dominam ainda hoje o debate sobre Fantasmas. Embora sendo temas basilares, o texto confronta-nos com muito mais do que uma doença com sequelas incapacitantes e a dúvida de uma mãe acerca da eutanásia. Pela voz de Helena Alving - uma Nora que não bateu com a porta, uma Hedda sem as pistolas do General Gabler - Ibsen confronta o preconceito, o conservadorismo religioso, a moral burguesa e traz à luz questões como o Direito à Felicidade, o Direito à Verdade, a Liberdade individual, o Incesto. 

A acção decorre entre um fim de tarde e o amanhecer do dia seguinte, das trevas para a luz, da ignorância para o conhecimento. Pelo caminho há papéis para assinar, taxas de juro para analisar, um seguro que não se faz, o peso da opinião pública, um carpinteiro incendiário, uma filha ilegítima, traições, acusações, a má-língua, enganos, o preconceito, a cobardia, amores por cumprir… o quotidiano - desafios ao encenador e ao tradutor – que não podem deixar que esse lixo dos dias suje o espetáculo ou o texto ao ponto de não deixar ver a clareza dos conflitos de natureza superior travados por Helena, mas ao qual têm de dar o espaço necessário para poluir o quotidiano de banalidade. 

É esta a nossa tragédia, a velocidade do dia a dia, o adiamento de desígnios maiores em troca da solução dos pequenos problemas: uma torneira que pinga, um pneu furado, uma conta inesperada para pagar, a máquina de lavar que se avaria, um livro que desaparece, três horas à espera num serviço por um papel que não está lá… e lá se vai o precioso tempo da vida a resolver questões menores enquanto todos, mas todos nós, temos sempre um conflito ético superior com que lidar.

Rita Lello

O Direito à Alegria de Viver

Fantasmas (1881), uma peça que é como uma série de portas abertas que vão dar a outras portas, fechadas.

Há mais de um século, Ibsen escandalizou o público ao dar palco a um tema como a Sífilis. O Escândalo de trazer para o palco, à vista de todos, um tema repugnante quer moral quer fisicamente dominou o debate sobre este texto, mas são temas como o direito à Alegria de Viver, o Direito à Liberdade, a hipocrisia da Igreja, a Eutanásia, a aceitação do Incesto, ao poder da Hereditariedade que se debatem sob o manto do escândalo. E esses temas, como sempre em Ibsen, ainda ocupam hoje em dia as preocupações do mundo ocidental industrializado.

O que é verdadeiramente espantoso em Ibsen é que ele foi capaz de encenar confrontos titânicos acerca de diferentes visões do mundo pondo em cena pessoas comuns em salas de estar comuns. Um candeeiro não é apenas um candeeiro; é o símbolo do sol vivificante de que Osvald precisa. Osvald não é apenas um filho doente; ele, que volta para casa para poder morrer, é o portador da tocha do Direito à Alegria de Viver. Helena Alving não precisa ser uma rainha ou um Deus para ser uma heroína trágica, ela é apenas uma mulher. A sua jornada de autoconhecimento, a sua batalha contra o convencionalismo e sua avaliação corajosa de suas falhas é que merecem nosso respeito e admiração e dão aos Fantasmas o estatuto de Tragédia.

Nunca se ouve dizer a palavra “sífilis” na peça, mas é dela que Helena Alving está a falar quando, ao expôr a libertadora verdade sobre o que foi o seu casamento ao Pastor Manders, afirma que “acabou por acontecer o inevitável” ao Barão Alvin, quando fala de uma “morte tão depravada como foram os dias da sua vida”. Também é à sífilis, a doença francesa, que se refere Osvald no relato da sua ida ao médico em Paris quando soube que pairava sobre si uma sentença de morte: “desde que nasceu que o seu corpo está a ser comido por vermes... Vermoulu.” e que não lhe restava muito tempo. Mas não foi só no século XIX que este tema causou escândalo, ainda hoje, dar um palco de aparência burguesa a um tema como uma doença venérea é como ter um elefante no meio da sala.

Para os que acusam este Drama Familiar de ter como cerne da acção dramática um tema ultrapassado aconselhamos a consultar os números alarmantes do aumento recente de casos de Sífilis, mesmo com a penicilina continua a cegar-se de Sífilis, e enlouquecer-se de sífilis, a morrer-se de Sífilis. Mesmo assim, Ibsen nunca a nomeia deixando ao público de todos os tempos o espaço para preencher esse silêncio. E é de silêncios deixados ao público para preencher que se faz o desenrolar desta narrativa – porque é uma narrativa: a doença herdada, a paternidade de Regina, o pedido de ajuda na morte assistida, a dúvida do cuidador.

Posto isto, atrevo-me a dizer que a doença em si não é mesmo o mais importante. A Doença simboliza aqui a Herança. Ibsen fala-nos do peso da hereditariedade. Mas esse peso da hereditariedade, que se manifesta na doença que Osvald herdou do pai – que Helena Alving conhece bem e de que talvez também padecerá já vez que a Sífilis congénita só pode ser transmitida pela mãe, e com Helena talvez também Regina, filha de Alving e de uma mãe que morreu cedo, enfim... toda uma linha de contágio – mas esse peso da hereditariedade, dizia, é sobretudo o peso daquilo que “herdamos dos nossos pais e das nossas mães” e que se manifesta em nós, todas “as doutrinas, crenças e opiniões mortas” que se mantém vivas como “Fantasmas de que não nos conseguimos libertar” e que são responsáveis pela “teia de obrigações” que nos aprisiona e  faz com que a vida se torne um “vale de lágrimas”, impedindo-nos de alcançar, como uma mortalha claustrofóbica sobre a sociedade, aquilo que Ibsen quer verdadeiramente pôr as suas personagens a discutir: o Direito à Liberdade, o Direito à Alegria de Viver, o Direito à Escolha. E isso é de todos os tempos.

Rita Lello

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